UMA VIGÍLIA PELA VIDA. 24 HORAS DE TEATRO. UM ESPETACULO QUE COMEÇA AO ANOITECER DE SEXTA FEIRA E TERMINA NO ANOITECER DE SABADO. UM SHABAT PELAS VITIMAS DA HUMANIDADE. UMA VIGÍLIA CENICA. UMA PEÇA QUE COMEÇA COM O TOQUE DO SHOFAR DA SEXTA FEIRA E SEGUE EM MOTO CONTINUO ATÉ SOAR O TOQUE DO SHOFAR AVISANDO DO ESCURECER DE SABADO. UM JULGAMENTO. QUARENTA ATORES RELATAM OS ULTIMOS DIAS DO JULGAMENTO DE FRANKFURT. UMA DENUNCIA. UMA NOITE DE RESISTENCIA. DE AMOR AO TEATRO, A ARTE, A ETICA, A VIDA. UM ENCONTRO. UM TEMPO DE REFLEXÃO SOBRE OS HORRORES AOS QUAIS SOMOS TODOS PASSÍVEIS. UM TEXTO DE UM GRANDE AUTOR: PETER WEISS. TUDO ISSO ABRIGADO NUMA CASA DE CULTURA. SOB OLHAR ATENTO DA LAURA ALVIM.
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Um dia recebi o email acima do Eduardo e respondi dizendo que achava a idéia excelente. Ele, então, me mandou o texto da peça.
Precisei ler em capítulos. Era difícil suportar os relatos indigestos das atrocidades cometidas contra os judeus no campo de concentração de Auschwitz, por muito tempo seguido, sem parar, sem dar uma respirada. Pensei até em não fazer. Medo.
O projeto foi caminhando e começaram os ensaios. O desafio era nos prepararmos para uma maratona de 24 horas em cena, sem sair do personagem, com um texto pesado destes. Os ensaios não se realizavam todos os dias como é costume nas montagens teatrais, mas com intervalos de quinze dias, depois uma semana, e somente perto da apresentação nos reunimos com uma frequência maior: três vezes na semana. Os personagens deveriam ser preparados individualmente, cada ator no seu silêncio e a cada encontro apresentávamos ao diretor o caminho que estávamos seguindo. Quanta liberdade para pesquisar, tentar, ousar, criar. Mergulhei de cabeça.
Logo no primeiro encontro o Eduardo trouxe algumas musicas e eu me apaixonei por uma delas em especial: Yerushalaim Shel Zahav. Eu precisava cantá-la. As instruções da direção eram para que não tomássemos um caminho de auto piedade e lamentação, mas para que não perdêssemos a vontade de revelar o que tinha acontecido, de fazer a denúncia. O caminho deveria ser para cima e não para baixo. A Testemunha 4, meu personagem, passou pelas cruéis experiências médicas do bloco 10 e eu terminava a cena em que conto essa passagem, chorando muito. Pensei então em cantar, ao fim do relato, este hino à Jerusalém, ao futuro, à esperança. E funcionou. Ao fim da cena, no ensaio, pegando todo mundo de surpresa, comecei a cantar, e mesmo tendo “quebrado” no meio da musica, o esforço da personagem para continuar, para se manter em pé e inteira, estava lá, manifestado, em meio às lágrimas, pela força da música, e da vontade de cantá-la.
O assunto era apaixonante, o material de pesquisa farto, e eu me envolvi completamente. Meu namorado é judeu e esteve comigo, participando, o tempo todo, esclarecendo detalhes, me ajudando com a pronúncia hebraica da musica, que era bem difícil de decorar. Eu sabia o que estava sendo dito, mas a língua é tão diferente que eu tinha que decorar sons, fonemas, até que não precisasse mais pensar neles, apenas na intenção, só na intenção.
A composição do personagem tinha que ser cuidadosa. Como seria a postura, o andar, de alguém que desde o seu internamento no Campo, vinte anos antes, está doente, sente vertigem e náuseas? Como cuidaria de sua aparência, que roupas escolheria, como arrumaria os cabelos, uma mulher que teve o seu corpo vasculhado, suas partes intimas usadas, sem cerimônia, por seis meses, em nome de pesquisas de esterilidade, que não levavam em conta a dignidade humana de suas cobaias? Haveria ainda alguma vontade de ser atraente? De ser mulher? O que teria sobrado de feminino nela? Como se comportaria uma pessoa que teve sua família assassinada e tudo o que possuía usurpado?
Ao mesmo tempo, ela de um jeito ou de outro sobreviveu, conseguiu logo que chegou a Auschwitz um cargo como empregada de escritório no Departamento Político e para sobreviver, foi obrigada a entrar de alguma forma naquele esquema. Essa mulher foi uma guerreira, sem dúvida. E uma vitoriosa. Ela está lá. Sobreviveu!
Nos ensaios era lindo de ver como cada um dos personagens ia nascendo. Como se fosse uma panela de pipoca, onde o óleo e o calor vinham da presença segura da direção, estourava um, depois outro e de repente mais outro e outro e outro. Havia uma força de coesão funcionando no elenco, onde o crescimento de um, a ousadia de outro, contaminava a todos, e no dia 25 de setembro de 2009 estávamos lá, na Casa de Cultura Laura Alvim, ao toque do Shofar de uma sexta feira, início do Shabat, todos os personagens, cada um com sua características, tão inteiros, tão diferentes entre si e tão similares. Não havia dois nazistas parecidos e no entanto podia-se ver claramente quem eram os nazistas. Não havia dois judeus iguais e no entanto todos eram tão judeus e tão sobreviventes do Holocausto! E havia no silencio entre nós a cumplicidade de quem sabe que vai enfrentar juntos uma guerra, uma experiência difícil, única, jamais vivida por nenhum de nós, desafiadora e imprevisível: a de ficar 24 horas seguidas em cena, sem sair do personagem, repetindo, repetindo, e repetindo os horrores, ouvindo e ouvindo aqueles relatos devastadores. Como em uma “dança das cadeiras”, como num “baile de fantasmas”, subíamos e descíamos daquele palco para contar nossas histórias, para denunciar a bestialidade da qual podemos ser capazes, atravessando as horas da noite, as horas do dia, vencendo o sono e o cansaço, carregando nossos corpos cada vez mais doloridos, mas invencíveis, munidos da nossa determinação e da nossa vontade.
Não podíamos consultar relógios e nos guiávamos pela escuridão da noite, pela luz do dia, pelo número de pessoas na platéia, para saber um que momento do tempo estávamos. E então veio o aviso, cochichado no ouvido de cada um dos atores: O Shofar pode tocar a qualquer momento durante esta passada. A cada um que subia, a cada sobrevivente que depunha, nós esperávamos pelo anúncio do fim da nossa incrível jornada.
Aconteceu em uma Grande Pausa. Eu trazia nas mãos, naquela passada, uma rosa branca que ganhei do meu namorado por que nesta mesma sexta feira fazíamos sete meses de namoro. Caminhei pela platéia até a beira do palco e fiquei ali olhando aqueles nomes, das família desaparecidas, escritos na parede do fundo, ao longo das últimas 24 horas, uns já por cima dos outros, como numa vala comum, já àquela altura indistinguíveis, uma imagem aterradora, e senti uma enorme vontade de depositar minha rosa branca aos pés daqueles nomes, como um pedido de perdão em nome da humanidade, e neste momento ouvi o toque do Shofar! Em um ato contínuo pousei minha rosa branca no centro do palco e estava cumprida a nossa missão, a nossa jornada, a nossa homenagem, nossa vigília pela vida, testemunhada por todas as pessoas que entraram e saíram daquele teatro durante todo o dia, durante toda a noite e na madrugada, sem nunca nos terem deixado completamente sós!
Perdão.
Obrigada.
Testemunha Carla Ribas.
Eu vi o início da peça. Sou sobrinha do Nilson Nunes e amiga do Johny (testemunhas 1 e 2).
ResponderExcluirMas a Carla Ribas pra mim foi imbatível, maravilhosa.
Me emocionei lendo este texto dela aqui.
Queria poder ter ficado mais, ou ter ido no dia seguinte ver o final. Mas não foi possível.
Já sei que terão nova pela em dezembro e irei novamente.
Amei a peça e emocionei-me muito.
Parabéns, Carla. Parabéns a todos os atores. Parabéns, diretor, pela ousadia!
Beijos
Luana Zanelli