Ao comentar um livro sobre o teatro contemporâneo, o antigo diretor, já aposentado, Gerald Thomas, prosseguiu em sua cantilena autorreferente, segundo a qual o teatro está morto ou sobrevive se autocopiando de maneira nauseante. Gostamos dessa consciência crítica ou autocrítica mas, para o espectador de teatro, cabe o espetáculo de pesquisa de linguagem, mas também aquele que, fundado em um texto importante, sirva apenas de veículo para a sua locução adequada. Afinal, conforme disse o extinto diretor, o teatro é uma arte para poucos e, se tem sua contribuição na mudança das referência culturais e nas decisões políticas individuais e coletivas, ela pode vir das mais variadas formas, à parte os empreendimentos meramente comerciais que nada tem a oferecer ao teatro como arte, e apenas repetem ao público conservador aquilo que ele quer e está preparado para ouvir e ver.
Depois do preâmbulo, a razão: a representação, por 6 horas consecutivas, da peça de Peter Weiss, O INTERROGATÓRIO, dirigida por Eduardo Wotzik, nada além da transposição do menos célebre Julgamento de Frankfurt (comparado com o de Nurenberg), ocorrido em 1965, que se ocupou de figuras menores mas atuantes no campo de concentração de Auschwitz, de triste e global memória.
Temos um juiz no centro do palco atrás de sua mesa; à sua direita, outra mesa com sua cadeira, ocupadas sequencialmente por testemunhas de acusação; pelo palco, circulam o advogado de defesa, o promotor e funcionários da Justiça; na própria platéia, nas primeiras fileiras da esquerda e direita, acusados e testemunhas de acusação (sobreviventes do campo de concentração).
A rigor, não é um espetáculo teatral, mas uma transposição, para o palco, das sessões de julgamento, onde o espectador ouve os agentes envolvidos a debater responsabilidades e conivências dos envolvidos. Relatam-se fatos - para uns, para outros (os acusados, é claro) injúrias ou interpretações errôneas. A defesa dos acusados é padronizada: nada viram, de nada sabiam ou, se estiveram um dia no pátio de execuções ou diante dos fornos crematórios, foi apenas uma única vez e porque cumpriam ordens. Cumprir ordens: alguém pode ser culpado por isso? Sim, eram ordens horrendas, mas poderíamos realmente questionar as razões de Estado? As testemunhas, coincidentemente, só o foram porque um dia estiveram diante dos fatos mas, na maioria das vezes, demorou a reconhecer o que realmente era o campo de Auschwitz. A fome e a fraqueza decorrentes, mais as contínuas torturas, impediram qualquer ação de resistência.
Evidentemente, os atores estão em um palco representando seus papéis. É teatro, mas decupado dos maneirismos da arte. O realismo tende ao absoluto, restando claro as espectador que, como o julgamento não é real, sobrevive o jogo teatral, mas como exposição das razões e desrazões que constituíram um dos pontos culminantes da barbárie humana, não somente contra judeus, mas também contra comunistas, homossexuais, ciganos, poloneses, russos... Novamente vemos o Estado Nazista como exemplar em sua organização detalhada com objetivos genocidas. Disso resulta o comprometimento frio do cidadão alemão com um programa bem articulado e de execução factível, além de urgente e necessária. Teatro também pode nos por diante das matérias do dia e das de sempre; pode ser experimental, mas pode restringir-se ao realismo possível. Será sempre teatro.
De O INTERROGATÓRIO, que acompanhamos por todas as 6 horas sem cansaço e quedas de interesse, ficam inúmeras interrogações, mas vale um depoimento de um dos testemunhos, segundo o qual o fato de que de um lado estavam alguns cidadãos despojados de seus direitos e de outro aqueles que representavam a legitimidade e legalidade dos direitos enquanto atribuídos pelo Estado Nazista, não passou de fatalidade, pois os papéis seriam intercambiáveis. Somos todos seres humanos, e nenhum de nós está isento de ser um dia vítima, no outro algoz: as condições de produção da barbárie persistem e integram a todos em seu caldo cultural de racismo, xenofobia, homofobia, machismo, feminismo e todos os demais ismos devotados, sobretudo, ao poder, e este à imposição de princípios contra os quais apenas os degenerados lutam, segundo seu próprio ponto de vista, que pode ser o dos nazistas, dos judeus, dos homens, das mulheres, homossexuais, negros, comunistas, liberais, religiosos, e por aí vamos, lista infinita. Ou seja, os inocentes não são personagens históricos e, como tais, não pisam no palco (ou na platéia) do teatro.
Escrito por
RACHEL NUNES
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