quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uma reflexão sobre O INTERROGATÓRIO, a partir do olhar de um espectador

Que “o campo” ainda sobrevive, eis aquilo de que não devemos nos lembrar, se a vida puder se perder na ficção. E se é assim que temos vivido, haveria ainda espaço para a resistência? “O Interrogatório” não pretende discutir essa questão. Simplesmente instaura um espaço privilegiado de resistência.

É magnífica a forma como a peça instaura a repetição em diversos níveis. Parece fundamental que se reconheça na própria racionalidade do processo em andamento a perpetuação daquilo que se pretende condenar. Algo que aparece do modo mais claro na figura do advogado de defesa, cuja atuação ambígua só pode escapar ao desespero ao nos remeter sempre de volta à lei. Essa mesma lei em nome da qual apenas cumprimos o regulamento, pretendendo escapar, com isso, à dimensão ética de nossos atos.

Mas há ainda uma dimensão silenciosa, quase subterrânea, de encenação dessa triste verdade. Há a personagem que fica transitando com uma pasta, de onde eventualmente retira papéis a serem assinados pelo juiz. Figura que aparece como um olhar onisciente, que se move de modo irrestrito por todas as dimensões do espaço público, supervisão atenta de tudo o que se passa nesse espaço. Podemos reconhecer nela uma espécie de encarnação da instância superior à qual todos sempre poderão se remeter ao pretenderem justificar seus atos em nome da lei. Uma espécie de encarnação da própria Instituição, que não enuncia ordens a ninguém, mas configura o campo no interior do qual a lei pode vigorar. Inscrita do outro lado da Instituição, temos a servente mansa, calada, obediente, impotente e, acima de tudo, encarnação do ponto onde a resistência se torna impossível. Lugar onde a única alternativa é estar em acordo com as próprias coordenadas que a destituem de qualquer liberdade. Figura dócil que se molda de acordo com seu papel, como todos os outros. Atualização cínica do espetáculo.

Em contrapartida, podemos reconhecer na figura de outra personagem sem voz alguns dos pontos cegos da lei, que se constituem como lugares onde a resistência se torna possível. Possível, mas às vezes inexistente, como é o caso da figura da faxineira. Embora seja uma serviçal, sua conduta não se ajusta sempre às regras. Sem uniforme, trata-se da única personagem que, em alguns momentos da peça, sobe ao palco pelo centro, sem usar as escadas laterais. Um pouco como se estivesse na borda da lei - às vezes com ela, outras fora dela. Em todo caso, está em cena. Onde quer que se configure um espaço de liberdade no interior da lei, ali ela poderá habitar. Como quando se diverte cantarolando e comendo com as testemunhas, num intervalo do julgamento. Ela é a própria encarnação do intervalo, da ruptura, da fronteira. Seu poder subversivo reside precisamente nisso: habita o interstício.

Mas há também aquele que está na sombra, fora de cena. Lugar da memória, inscrevendo nomes nas paredes. Como se fosse ele que, justamente estando fora da história, pudesse contá-la, ainda que a única maneira pela qual se pudesse fazer isso fosse a repetição daquilo de que ainda não escapamos. Seria equivocado dizer que ele não tem voz, pois sempre aparece com a música. É ele o artista, aquele que aponta para um outro horizonte possível. Tudo se passa como se toda peça a que estamos assistindo emanasse dessa figura. É ele quem nos lembra durante a peça, como não deveremos esquecer ao sair, que o ator está condenado, n’O Interrogatório, a permanecer na única posição ética possível. Somente o público pode descansar, ou nem mesmo estar lá pra ver... Algo que lembra as palavras de Plínio Marcos, de que o talento do ator é muito mais uma condenação do que uma dádiva. Nunca isso foi levado tão a sério.

O teatro, então, pode nos aparecer como uma estratégia de resistência realmente possível. E enquanto o público se cansar, os atores não poderão descansar. Repetir sempre, e quando houver exaustão, que se repita ainda outra vez. Enquanto alguém puder dizer “eu não me lembro”, enquanto alguém puder perguntar, atônito, se “não houve resistência?”, que o tribunal permaneça aberto. Até que não seja mais possível esquecer.

Pois devemos nos aproximar de “O interrogatório” colocando a questão de modo inverso: o que acontece quando a ficção se torna realidade?


Beto.

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